SANTA SCALA

Por baixo do lençol aqueciam-se os três pastorinhos belgas, não esperavam ninguém mas a morte com a sua carita bifurcada veio ter com eles, por baixo do lençol meteu-se a morte como um cãozinho. Estava muito frio. O rabo da morte ficava de fora.

Três deles são rapazes e três deles são raparigas, dois deles são anjos. O outro também é anjo. Às quatro da manhã o primeiro acende uma vela, o outro liga a playstation, o outro abre o Google news para saber as novidades. Está muito frio e os três entram uns nos outros por horas a fios. Alguns milénios depois um deles sua e os outros também suam. Depois vão para o corredor em fila. Com as suas pantufas entram no meu quarto. A morte vem atrás deles com o rabo aceso. A morte que é a primeira correcção lambe-me a cara. O primeiro escreve a baton no meu espelho: “O Paraíso é outra pessoa”. O segundo lambe com a língua o espelho e apaga a frase. Fica com a língua roxa. A morte lambe-lhe os pés. E ele começa a falar que o capitalismo é uma casa e que o comunismo é outra casa, mas que um bom empreiteiro compra duas casas, destrói-as e das suas pedras ergue um prédio. O outro goza-lhe, ri-se lhe na cara – Deves ter a mania!
O que tem a mania acaba de lamber a frase mas as palavras ganham outra cor e a frase é agora fluorescente.

Dormimos um meta-sono igual ao que Jonathan Franzen criou e acordamos no terceiro milénio depois de um homem que me esqueci o nome. Trazia-o apontado, preso ao cinto, para que quando fosse noite e o tirasse me lembrasse do nome do messias. Mas hoje não trago cinto


Um deles conta-me a história de um antigo traficante de relíquias que viveu por volta do ano mil. Um dia roubou os ossos de São Bento de Nursia guardados num altar da abadia de Montecassino. Depois vendeu-os na mesma caixa dourada ao abade de Fleury-Sur-Loire. Adormeci a meio da história e Sonhei com São Bento a caminhar pela neve de Montecassino com os pés vermelhos e grandes. São Bento para em frente a um rio e vê os patos que em fila se deixam guiar pela corrente de uma água quase gelada.


A memória colectiva tem mecanismo onde a razão não entra.

No espelho estava escrito “Patrício”
Depois “Os que são quentes”
Depois “Não sei se ele está em todo o lado, mas sei que é apenas a vontade de rir”


Tínhamos vontade de fazer coisas doces.



Nuno Brito, 2009