O Jaguar e o seu dialecto

Veio ter comigo um homem com um estranho amuleto. A sua forma e cor eram indefinidas. Não percebi se era uma cruz mais parecida com uma estrela de várias pontas ou um símbolo de uma organização mundial de luta contra o cancro. Não era verdadeiramente um homem, todas as suas feições se pareciam com um jaguar. Trazia ao pescoço uma cruz fluorescente. Subimos o cerro, os dois sem dizer nada e em passos seguros como se fossemos só um. A cruz que o jaguar trazia ao peito iluminava todo o cerro. Quando chegamos ao cimo, o jaguar contou-me várias histórias, todas elas sem qualquer moral ou variante, coisas que acontecem porque têm que acontecer. Começou a tocar numa flauta de osso uma música pré-hispânica. Disse que isso acalmaria os Atlantas e todos aqueles que esperam. A paciência é um acto dos ídolos, aos homens é exigido mais, disse. Estranhei ter percebido a frase não através de palavras, mas do som rouco da flauta. Lá em baixo, Ticoman dormia, passava um ou outro carro.
Contou-me que a flauta fora feita num osso do braço esquerdo de São Judas, padroeiro das causas perdidas e lhe fora oferecido por um homem ou por um jaguar na rua de Regina, não se lembrava bem.
Um grupo de rapazes aproximou-se em passo inseguro, confundiram o Jaguar com um traficante ou foram apenas atraídos pela luz fluorescente do estranho amuleto.


Contou-me o Jaguar as conversas que tinha tido com Macedónio Fernandez e como o ajudou a escrever uma novela eterna, sempre incompleta como qualquer narrativa. Falou-me de quando ia ter com Roberto Bolaño a um quarto de hotel. Falou-me do Rio de La Plata e de Rober Diaz. Aí o cerro iluminou-se por completo e houve algumas aparições marianas por toda a cidade.
O jaguar adquiriu uma expressão mais calma e vestiu um grande sobretudo deixando o amuleto à vista. Seguimos por um caminho de terra junto à linha de comboio e chegamos a uma pequena barraca onde dois homens fumavam. Uma voz começou então por nos contar em todas as línguas ao mesmo tempo, a história simples
da humanidade. No interior passava Morphine sem que qualquer aparelhagem estivesse a funcionar. Uma grande escultura em obsediana erguia-se no meio da sala. O Jaguar guiou-nos por um corredor e depois por outro, seguiam-nos agora mais pessoas, gente simples numa peregrinação silenciosa até entrarmos num pátio interior com uma fonte no centro a jorrar água da boca de quatro leões de bronze. Todos os reis de Granada nos saudaram, sentamo-nos nos espaços relvados entre as esculturas. Rimo-nos do rabo arredondado de um bulldog que passou. Entraram no pátio alguns ditadores que haviam marcado a História da humanidade. Um ou dois anticristos juntaram-se também à assembleia. Estávamos em Granada e esperávamos uma invasão espanhola. Contava-mos histórias como as de Bocaccio. Todos nos sabíamos ausentes de simbolismo.
Um índio juntou-se a nós sentiu a nossa segurança e preparou em cima de uma mesa com um cartão do metro, linhas de cocaína geometricamente perfeitas. Alinhava e distribuía as linhas como um arquitecto desenhando a planta de uma cidade da Antiguidade. Com o cartão do metro, fazia as muralhas, as casas, os estábulos, os palácios, os templos de adoração, os balneários e os aposentos dos escravos, uma planta em escala reduzida de uma cidade, com os seus muros finos de cocaína. Perguntei-lhe se era Babilónia porque me pareceu reconhecer o farol e a torre junto a um antigo aglomerado de casas. O índio disse-me que era Cartago. Jaguar enrolou uma nota da Hungria, inalou a antiga cidade e estremeceu. Sentiu-se abrangido pela múltipla perspectiva que é a de todos os olhares e todas as línguas. Ofereci-lhe a flauta de osso, iluminei-lhe o cerro com o amuleto. Era em tudo parecido comigo. Éramos apenas dois jaguares que passam.


Nuno Brito, 2009