A Cortina


Não chegar ainda ao fim, é o que é ser rio.



A cortina não era de pano, mas de espuma que caía do último andar. No cimo do prédio uma mulher epiléptica a espumar branco, o branco que escorria separava a visão de dentro e fora dos apartamentos. Uma testa branca, como a de Cassandra, a que não esquece (1). A cortina era contínua. Cobria todas as janelas; líquida e viva, uma cascata de leite; Por ela o sol passava filtrado, um pouco roxo, ganhando novas tonalidades de âmbar. A cascata trazia cristais líquidos, pequeninos bocados de obsediana e cerâmica sigilata que os argonautas deram a beber à mulher do terraço para que o espasmo fosse o mais puro e em tudo contínuo. Na gelatina os argonautas colocaram também muito Xanax. A sua vontade de esquecer formava a cortina; por vezes não era o sol que se via dentro dos apartamentos, mas toda a história universal projectada em cores vivas na tela que caía a toda a pressa. Às vezes era uma apresentadora da Antiga Grécia quem falava. Outras vezes na tela de espasmo passava um filme nunca realizado da consciência humana(2).
O rio é memória e desce por Itália, depois de se misturar um pouco mais acima com águas do Danúbio.

Um velho homem, que depois de uma longa conversa com Bataille olhou fixamente para o sol até os seus olhos derreterem, veio ter comigo e contou-me três variantes possíveis sobre a origem da cortina viva. Por ainda não ter sido inventado qualquer suporte de escrita não pude registar as três narrativas(3). Das três me esqueci.

A perspectiva múltipla diz-nos que o paraíso é outra pessoa. Ao cair no pátio, em frente ao prédio, o líquido branco do espasmo em queda vertical formava um barulho que acalmava os que precisavam de esquecer. De cada lado da entrada do prédio havia duas estátuas de titãs a beber por um búzio. Da fonte descia então o rio. Assumia mais à frente duas bifurcações. Uma para sul e outra para sudeste. A segunda formava um delta onde os que aquecem falavam e bebiam. Os dois sabiam a leite ainda quente.
Algumas raparigas tomavam banho no rio de espasmo, ficavam com o peito e os braços a pingar de nata ainda quente. Lavavam a cara e os braços.

Com algum medo de ser acusado de pouco rigoroso pelos cartógrafos modernos, Estrabão decidiu não incluí-lo na sua Geografia(4). Também Plínio teve medo que o vissem como um louco.




1) O rio é por isso visto pela nova filologia alemã, como a catarse final, a memória a escorrer numa queda de espuma que forma uma tela branca. A queda final da memória. Pela tela de espasmo passam imagens da história universal, a memória pessoal e a dos outros.
2) Sobre este tema, ver a história do cinema pré-hispânico de Georges Battaille.
3) Ptolomeu tinha já roubado a escrita aos deuses para a oferecer aos homens, mas o papiro ainda não tinha sido criado. Isso levou-me a pensar muito sobre a necessidade de escrita do homem moderno, do que precisa de dizer e do que pode dizer. Do que pode ser esquecido, todas as coisas, e da memória última que é um rio de espasmo.
4) A história tinha-lhe sido contada pelos vendedores de cerejas que da Arménia entravam em Roma com grandes carregamentos para as festas dos senadores. Os mesmos tinham-lhe assegurado a existência de outros rios, esses incluídos na sua “Geografia”.


Nuno Brito, 2009