O Museu

Deitou-se de bruços à espera que as bestas na sua cabeça sossegassem. Os olhos fecharam-se com força para mandar calar toda a gente. Quando era pequeno as vozes vinham das coisas, dos objectos dentro dos frascos, do ranger das vitrinas do Museu onde o pai trabalhava. Vinham-lhe à cabeça como uma lente suja, imagens do primeiro dia em que fora aquele lugar. Era ainda hoje um espaço sem tempo. Como um hospital sem pessoas. Passara horas neste silencio insinuante, perdido nos reflexos aquáticos que vinham do vidro verde do formol. Salas e corredores de madeira, que lhe pareciam demasiado grandes, escuros, que lhe davam sono, mediam e continham quem por eles passasse.
O pai, que tinha sido também sua mãe, seu avô e irmão, tinha todos os dias algo de novo para lhe mostrar. Seguia sempre o mesmo ritual. Esperava até que ele se encontrasse imóvel e iniciava metodicamente a desvendar as surpresas, o horror. Guiava a sua atenção incrédula por entre a dissecação de rãs, da taxidermização de veados, do embalsamento de cães. Cada gesto, cada passo, cada nó. Não sabia ao certo, se o que gostava mais nesta descoberta, era a beleza inexplicável desse mundo novo e cru, se era o desconforto sinistro que sentia ao perceber que o conhecia até à data, tinha que ser agora reinventado.
Dizem que o que para nós é mais sinistro, é algo que nos é familiar e ao mesmo tempo algo que não conseguimos catalogar, que está deslocado das regras, do que achamos razoável. Talvez ele próprio, fosse para os outros, uma figura sinistra, tinha essa noção, mas sempre se tentara reger pela clareza dos seus gestos, e pela limpeza da carga pessoal sobre si mesmo. Ninguém sabia o seu nome ao certo ali dentro, nem ele se interessava por saber o nome dos outros. Talvez o respeito que tinha pelo que o rodeava o tivessem tornado Vegan, ou na maior parte das vezes, mais estritamente herbívoro. Recusava medicar-se. O seu ópio estava ali. Hoje, passados tantos anos, sentia dentro de si um desconforto vazio. O que sentia já não era a mesma curiosidade que o seduzira a explorar todos os factos que conseguira sobre a zoomorfologia do mundo, era diferente. Pesava cada passo. Tinha medo que um deslize pudesse partir aquela ordem suspensa.
O dia acabou. Mais uma noite em silencio que tinha para si. Mordeu os lábios. Na branca casa de banho escorregadia e fria, no meio da noite, olhou o bisturi com confiança. Sim, confirmou, à sua frente tinha tudo o que precisava. Tinha mecanizado todos os gestos. A dor podia parar.
Nu, começou por colar à pele, a serpente aberta, ainda molhada. Vestiu o manto escorregadio de barbatana, que tinha trazido da sala do oceano. Pegou na cabeça de cavalo e libertou as cavidades obstruídas por algodão. Colocou-a na sua cabeça e viu o seu reflexo. Era um homem novo, puro. Assim ficou, mergulhado durante horas dentro do aquário da sala central. O seu momento só foi interrompido pelo guarda que veio de novo abrir o Museu ao publico pela manhã, obrigando-o a que ele voltasse sonambulamente ao seu papel discreto, de rasgar os bilhetes à porta da entrada.
Por vezes dava por si a observar o olhar das crianças que visitavam aquele lugar. Procurava dizer-lhes uma palavra, fazer um gesto mas não conseguia. Sabia que elas podiam pressentir o que encerrava dentro de si. Tentava ver-se nos olhos delas. Sabia que não passava de um adulto normal por fora, mas dentro de si sentia-se como se estivesse petrificado, num corpo inadequado, com pelos, desajustado em nível de gordura e em numero de órgãos.
Numa dessas tardes em que as horas estão quase a ir-se embora, viu-o. Era um rapaz parado no meio da sala das borboletas. Normalmente bastavam os seus gestos bruscos e cadentes, para que eles fugissem em direcção ao resto do grupo, mas este rapaz permaneceu de costas. Relutante aproximou-se, passo por passo sentindo o seu coração latejar dentro dos seus punhos cerrados. Ergueu o braço para o sacudir e foi aí que ele se virou. Não era um rapaz. Tinha os olhos muito negros. A sua pele escura coberta de pelos muito lisos formava uma barreira frágil sobre a pele cinzenta rugosa. Da sua testa nasciam dois cornos de girafa e da sua boca de lábios finos saía, de quando a quando, uma língua ágil que tocava o nariz curto e solido, com a mesma elegância da cauda de cabra que lutava com o ar à sua volta. Era uma figura bastante entroncada, mas não parecia feroz. Estava imóvel à sua frente como se quisesse espicaçar os seus sentidos numa luta muda.
Ajoelhou-se lentamente e posicionou-se ao nível dos olhos do ser. Dentro de si esquadrinhava aquelas formas, percorria cada angulo daquele ente misterioso. Fascinado com o seu horror esquecia-se de respirar. Procurou no bolso das calças. pelos restos de algodão com formol. Com a rapidez de quem mata uma mosca, fechou os olhos e saltou sobre ele com toda a sua força, anulando o espaço entre os dois.
Foi aí que tudo se desmembrou com o enorme estrondo. A pesada vitrina centenária abanou. Uma cascata de vidro pontiagudos e asas multicolores desabaram do alto, sujeitando tudo ao seu peso brutal.
Ainda com os olhos abertos, debaixo dos fragmentos que lhe fracturavam a pele, quando a dor se desfez no seu corpo, apercebeu-se a si mesmo. Era ele em criança, por de trás do vidro, a olhar para si, que boiava agora inerte e feliz por entre o éter de um dos cerca de trinta mil frascos daquele Museu.


Elsa Loff