Avé Natal

(WORK IN PROGRESS)

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“De manhã escureço,
De dia tardo,
De tarde anoiteço,
De noite ardo”

Vinicius de Moraes


FELIZ NATÁL…

Ardentes filhas do prazer, dizei-me! Vossos sonhos quais são depois da orgia? A Cinza… De repente, mais que de repente, a mulher, de porte donairoso, silhueta algo roliça, desviou “os olhos emigrantes” da conversa. Abrindo a bolsa de um aveludado tom bordeaux, pinçou lesta um cigarro, de imediato introduzido numa boquilha preta. O fogo do isqueiro deflagrou um clarão fátuo, mas ardente o suficiente para, em instantes, incinerar partículas de tabaco e a ponta da mortalha. Sem demora, uma golfada de fumo atravessou aqueles lábios de um escarlate vibrante.
…e as Horas. A seu lado, reverente como um súdito leal, o homem, esticando o braço, olhou para o relógio de pulseira prateada. Bonachão, algo anafado até, ele levantou uma voz austera, amaciada pela bonomia de uma primeira palavra. Querida, atenção às horas. Às cinco, temos um compromisso no centro de Lisboa.
A advertência tanto bastou para que eu me apercebesse de que começava a correr o risco de gerar algum constrangimento à agenda do casal. Muito bem, não se atrasem. Continuamos a nossa conversa um dia destes, uma noite destas, sugeri protocolar, segregando todavia a convicção de que esse reencontro nunca aconteceria.
Accaso nunca a imagem fugidia/Do que fostes, em vós se agita e freme!/ Afastando a piteira dos lábios (magenta), a mulher, despojada do mínimo assomo de fatuidade, foi cerimoniosa, mas ao mesmo tempo informal.
Será um prazer continuar esse papo, como vocês dizem no Brasil. Enquanto isso não acontece, consulte a “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”. Vai encontrar logo a “Metempsychose”.
No dia seguinte, quem eu encontrei, num típico restaurante escalabitano, foi meu camarada Nuno Sampaio, crítico de Cinema numa revista lisboeta. Ele devorava, é o termo, um entrecosto com arroz de feijoca.
N’outra vida e outra esphera, onde geme/Outro vento, e se accende um outro dia,/ Nuno, você nem imagina o que me aconteceu ontem aqui no festival. Tive um encontro imediato do 2,5 graus, com um anjo divinamente torto. Foi no final da exibição do “Santo Antero” do Dórdio Guimarães
O “Santo Antero” do Dórdio Guimarães passou no festival? Sabes que ele é filho do cineasta Manuel Guimarães!
Não, por acaso não sabia! O que eu fiquei sabendo é que a roteirista da fita, uma coroa enxuta*, tem uma compulsão poética muito intensa, muito antenada. O nome dela é… Natál…
É, Danyel, o Natal já não demora a chegar. Quem tem de ir chegando sou eu. Estou atrasado. O quê, vais ter um encontro galante, Nuno? Antes fosse. Vou às Portas do Sol tirar umas fotos do Tejo e da lezíria, que me pediram lá na revista.
Que corpo tínheis? que materia fria/Vossa alma incendiou, com fogo estreme?/ Olha, eu depois do almoço penso ir à Igreja da Graça, visitar a sepultura do Pedro Álvares Cabral. Valeu, nos vemos mais tarde no festival ou ao jantar.
Após degustar a açorda de sável, uma especialidade ribatejana, Danyel sempre decidiu tomar o rumo da igreja. Notável templo gótico, excelso exemplo de fervor artístico dedicado também a Santo Agostinho. No caminho, agradeceu ao acaso por ter conspirado a seu favor, para que pudesse cultuar um outro santo, ao mesmo tempo laico, profano, religioso.

Ano da Graça de 1979. Impunham-se os tons cinzentos do Outono. A estação começava a fazer surtir no meu astral aquela sensação de abulia deprimente que o anúncio da chegada do frio e da chuva sempre provoca. Eu estava, pela primeira vez, na cidade de onde o Salgueiro Maia, capitão de Abril, zarpou para precipitar a queda da ditadura salazarenta. Eu tinha sido escalado pela “Cinema Novo” para fazer a cobertura do Festival de Cinema de Santarém.
Logo que cheguei, consultando a programação do certame, deparei com um título que atiçou minha curiosidade. “Santo Antero”. Lendo o resumo, constatei que era uma espécie de biopic sobre o poeta Antero de Quental, expoente do romantismo literário português
Apesar do horário não ser nada propício, no dia seguinte, às 12 horas, me apresentei na sala de projeção, onde se acomodava uma exígua assistência.
Purificado pela zen luminosidade da Igreja da Graça, Daniel se dirigiu para o absidíolo direito. Diante da mesa do altar, lá estava a sepultura de Seu Cabral. Sobre a pedra tumular da campa rasa, uma inscrição em carateres góticos, se mostrava exígua em informações sobre o defunto. O epitáfio preferia antes exaltar os pergaminhos da esposa do navegador. Nem sequer uma alusão ao fato de ali jazerem, os restos mortais do descobridor (oficial) do Brasil.
E o Brasil esteve muito no cerne do solitário debate que, no final da sessão, o diretor e a argumentista se dispuseram a estabelecer com o que restava da escassa plateia. Pela minha parte, o diálogo se centrou em domínios essencialmente literários. Comecei por sublinhar o elevado conceito em que é tida no Brasil a arte poética de Quental. Para os brasileiros cultos e eruditos, ele continua sendo estimado como o terceiro grande sonetista da poesia portuguesa, depois de Camões e Bocage.
Mais que consideração, podemos falar mesmo de veneração, alentei. Ainda recentemente, li numa revista, uma matéria sobre reencarnação, que era literariamente ilustrada com um soneto do Antero sobre a transmigração das almas.
Seria certamente a “Metempsychose”!, arriscou, sem pestanejar, a argumentista Natália Correia.
A Natália Correia, Daniel! A Natália esteve aqui no festival? É a guionista do filme? E só me dizes agora, bradou o Nuno, quase derrubando a xicara do café. Dizer agora Nuno! Hoje, ao almoço, estavas tão apressado. Mas porque todo esse espanto, quem é essa Natália?
Essa Natália, Daniel, é simplesmente a maior poeta viva de Portugal. Sim, ela até é bem grandinha! Não gozes… e tu não sabes quem ela é. E sou obrigado a saber. E tu sabes quem é o Murilo Mendes? Não! Também não és obrigado a saber isso.
Vós fostes nas florestas bravas feras/Arrastando, leoas ou pantheras,/ De dentadas d’amor um corpo exangue… Mal regressei ao Porto, corri logo no dia seguinte para uma livraria em demanda de um exemplar da “Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica: dos cancioneiros medievais à actualidade” (1966). Olhando para a capa, verifiquei que tinha sido organizada pela Natália. Este desplante teve como consequência, o corretivo de três anos de prisão, com penas suspensa, por ofensa aos bons costumes. O Nuno tem razão, ela é mesmo grande, la mas grande, como diriam os vizinhos do lado. Até nos mínimos detalhes. Quando me sugeriu o volume, evitou fazer qualquer alarde da sua autoria. E lá estava impressa a “Metempsychose” do Antero de Quental, originalmente publicado no livro “Primaveras Românticas”, Porto, 1872., .

“Dilúvio e Pomba”. Nos meses que se sucederam, acomodado num banco da Rotunda da Boabunda, perdão, da Boavista, devorei a obra poética desta micaelense telúrica, como se fosse o mais comezinho e o mais refinado dos manjares. Era ela mesmo que sugeria. “A poesia é para comer”. E beber, acrescento eu. Ao mesmo tempo, pão e absinto. “Esta indomável Natália é uma “hematopoeta”, não hesitaria em proclamar Cocteau.
Afinal, ao fazer poesia, ela contemplava aquela abrangência holística que, etimologicamente, esta arte assume na língua greco-helênica. Nat era uma criadora, uma inventora, uma transmutadora, (“una hacedora”, proporia Borges), menina de transformar a mais prosaica das situações, a mais trivial das realidades cotidianas, num meigo, comovente, lírico ato poético, adejando como uma pomba. Ou num vulcânico, provocador e sardônico desacato poético, inundado pelas águas vivas e furiosas de um dilúvio.
A verve cínica –na acepção helênica- da adorável sátira se vertia genuína, espontânea em suas intervenções públicas. Seja enquanto deputada da Nação, seja enquanto luminar intelectual da Pátria ou referência cultural da Mátria. A promoção da cidadania, a defesa dos direitos das minorias sexuais, a propaganda de um conceito de feminismo arredio ao dogma do politicamente correto, a apologia da essência cívica da arte política se abrigava, entranhadamente, na medula de seu magistério fátrio- literário-civilizatório.
Pertencem hoje ao domínio da lenda algumas de suas demolidoras performances parlamentares. Como aquele automático poema irrisório, “O Fim do Coito”, concebido em plena bancada, no frenesim de um debate em torno de um tímido projeto de lei que autorizava a interrupção voluntária da gravidez. O muso de ocasião, 3 de Abril de 1982, seria o deputado João Morgado (CDS), que, parcimonioso, proclamava que “o acto sexual é para ter filhos”.
Mordei pois esta carne palpitante, /Feras feitas de gaze fluctuante…/Lobas! leoas! sim, bebei meu sangue! Ou ainda aquele soberano despautério de receber, junto com Helena Roseta, Cicciolina, enquanto deputada do Partido Radical italiano, na Assembleia da República. Um caso tremendo que abalou o Parlamento, corria o ano de 1987. Uma visita conforme o figurino da pornostar magiar, com top-less incluído e tudo. Que pedaço de mau caminho (1). Perante o escândalo farisaico de alguns deputados conservadores, Nat recordou que a estátua da República exibe, há quase um século, o torso generosamente desnudado.
Neste país, poucos, como ela, lograram ser tão audazes e eficazes, despindo aquela prática, víciosa e hipócrita, de que na vida vale tudo, desde que seja atrás do opaco biombo dos bons costumes ou debaixo dos sedosos panos da conspíqua moral(idade).
Sim, Natália você sabia (soube) muito bem fustigar o provincianismo, flagelar o paternalismo, os dois grandes males lusitanos. Insinuante, sedutora, faceira*, teve a ousadia de tirar a máscara dos soberanos e poderosos e ainda deles arrancar um sorriso de condescendente aprovação. E até deles receber comendas e condecorações, que você deveria ter rejeitado.
Voce podia ter sido apenas um Diógenes de saias, que, expedita e insolente, ordena ao imperador que saia da sua frente, porque lhe está tapando o sol. Você podia ter sido uma poet(is)a de estro mediano, de curto e estreito talento, porém de impacto estrepitoso e mediático, como tantos que por aí pululam.
Mas não! Você conseguiu enlaçar as sugestões sorvidas de vivências plenas e torrenciais num registro tecnicamente escorreito, formalmente disciplinado, esteticamente aprazível. Em alguns ensejos, sua arte se espelha ungida dos atributos divinos, espargida com os santos óleos da onipresença, onipotência, da onisciência. O que, naturalmente, me conduziu ao abençoado onanismo de te ler de modo recorrente, reiterado e reincidente.
Na exercitação do soneto, a disciplina mais exigente da poesia, decisiva prova real do valor literário de um vate, você secundou o mestre Antero. Assumo mesmo o exagero. E quero ainda (a)firmar que você, feliz Natal…, acendeu com seu “Credo” pagão ou com sua “Língua Mater Dolorosa” não mais um cigarro, mas abençoadamente, um sorriso novo e imarcescível nos lábios escarlates da língua portuguesa.
Claro que nem todas suas criações poéticas ostentam o selo de um integral e íntegro poder de invenção. Não aprecio mesmo nada, p.e., seu “Auto-retrato”. Esse poemeto tem pelo menos a virtude de provar, mais uma vez. que quando poetas (e pintores) arriscam fabular sobre si próprios , por norma ficam muito mal no retrato.
Situação similar ocorre com o anódino “Auto-Retrato” de Manuel Bandeira. Mas em compensação, ambos se mostram afins numa modernidade imune aos exageros modernistas. Ela e ele, nunca amaldiçoaram nem o rigor métrico do verso, nem a correção e o ritmo da rima.

Inúmeras vezes cogitei procurá-la no “Botequim”, para entrevistá-la, papear com ela, conhecer a tertúlia a que todas as noites ela doava o corpo, de alma aberta. Um reencontro fadado para nunca acontecer. Na aurora funesta do dia 16 de Março de 1993, após mais uma ardente “estação no paraíso” do seu boteco, as Parcas a arrebataram. Natália podia agora, fumar plácida mais um cigarro, sentada no banco de Ponta Delgada, em que Antero se suicidou. E dizer, com aquela voz poderosa, de heroína de um drama lírico wagneriano, a “Metempsychose”..
Eu apenas pretendia que a Natália me confiasse suas recordações daquela noite de eufórica luso-brasilidade, em que a Amália (Rodrigues) e o Vinicius (de Moraes) cantaram e declamaram juntos “Saudades do Brasil em Portugal”. Dessa função, no aconchego do sobrado da Amália, na Rua de S.Bento, também participaram José Carlos Ary dos Santos e David Mourão Ferreira, seus camaradas de poêmia.
Um (re)encontro adiado, porventura, para uma próxima reencarnação em que, por efeito de uma transmigração da alma, Natália retorne a máteria como a flor humilde que se encosta ao muro da opressão, para o abalar, senão mesmo, para o derrubar. Feliz Natál…ia.


Ainda tempo

Já neste século, num aniversário, melhor dizendo adversário, ganhei da Hercília de Oliveira um presente de inestimável valor e estimável afeto. “O Livro das Cortesãs”, antologia de poetas portugueses e brasileiros, da autoria de Albino Forjaz de Sampayo e Bento Mantua. É uma recolha de poemas sobre a prostituição e em abono e desabono das estrênuas profissionais desse oficio. Na pag.68, deparei com a “Metempsychose”, do Anthero de Quental. Lógico que a Natália conheceria esta edição da Livraria Guimarães, Lisboa, 1916.

Nota

1- A Natália também exuberava nessas artes do descaminho. José Augusto França não economizava nos elogios, aí pelos anos 50: “ela é a mais linda mulher de Lisboa”. Ary dos Santos realçava sua “beleza sem costuras”. Mário Cesariny se rendeu, também pela década de 50, aos encantos de Natália, na primeira vez que a viu no Teatro S.Carlos: “…era quase extra-humana, era muito mais linda que a mais bela estátua feminina de Miguel Ângelo.” Isto, apesar do pesar, de já nessa época, “não ser muito afecto à senhoras.”(entrevista a Carlos Câmara Leme, jornal “Público”,16.03.2003)



Danyel Guerra